Dormitório Masculino

Aquela era a primeira vez, em sete anos, que Ulysses adentrava o dormitório masculino da segunda coorte. Apesar de antigo no acampamento, o rapaz tinha pouco interesse em conhecer todas as suas instalações. Ou melhor: em conhecer todas suas instalações inúteis. Não havia utilidade lógica naquele local para ele que era da terceira coorte; no máximo em um ataque ao acampamento, como havia acontecido, para ir até lá resgatar alguém ou se esconder. E, nesse caso, contava com a defesa legionária para impedir que as tropas inimigas avançassem o suficiente para chegar ali. Ainda assim, mesmo com tudo isso, lá estava ele, indo voluntariamente até o prédio.

O filho de Nox estava escalado para uma equipe de investigação especial. O trio, montado pelo pretor, estava encarregado de vistoriar os arredores do Acampamento Júpiter e bater Oakland inteira, atrás de rastros de lycans restantes. No segundo semestre do ano anterior àquele, o índice de ataques de lycans havia aumentado, assim como o de desaparecimento de campistas enviados em missões. Não era, portanto, uma atividade única e sim constante, com várias expedições e partes a fim de garantir mais informações aos superiores. E, nesse equipe, além dele e de um filho de Febo da quarta coorte, estava Bernardo Buonarroti, um legionário da segunda coorte.

Bernardo não possuía nada de especial: era apenas mais um filho de Marte qualquer. Ele passava a quase 99% do tempo calado e sem se meter em nada. Não obstante, durante uma das vistorias, foi ele quem salvou Ardelean de um ataque de um lycan, não só matando o inimigo como também garantindo que os dois saíssem isentos de ferimentos (o que poderia comprometer suas vidas, posto que a mordida dos seguidores de Licaon costumavam transformar suas vítimas). Esse episódio não apenas garantiu a simpatia dele por parte do legado de Atena, como também despertou o interesse deste último no jovem adulto.

Ulysses não anunciou sua chegada, ele apenas a fez acontecer. Pediu a informação a um garotinho aleatório que arrumava a própria beliche e enfim encontrou seu alvo em uma das áreas do dormitório mais ao fundo. O descendente do deus da guerra estava ocupado fazendo a própria cama, quando o intruso se anunciou.

— Bernardo — Ardelean falou em voz alta. — Dino me pediu para repassar as novas ordens da próxima missão — avisou.

Parte daquilo era verdade, parte era mentira. Dino realmente havia passado as informações da nova expedição da equipe. Todavia, ele havia ordenando a Ulysses que a compartilhasse com o trio de uma só vez, para adiantar e tirar quaisquer dúvidas que pudessem ficar. Ou seja, ele estava indo atrás de Buonarroti antes de tudo, sem convocar também o terceiro integrante do time. Mas isso, claro, jamais seria relevado. Ao menos não por ele.

Ulysses observou o ambiente, dessa vez parado, com mais atenção. Aquele dormitório, mesmo em uma primeira e rápida impressão, parecia muito mais organizado e limpo que o da terceira coorte. Esse detalhe foi muito bem absorvido pelo meio-sangue, que mentalmente elogiou o grupo e desprezou o seu próprio.

— Porque ele me convocou mais cedo — respondeu em tom óbvio. — Vamos para São Francisco, dessa vez. Chegaram relatos de ataques de lobos no Golden Gate Park. Não vamos agir diretamente contra os inimigos se os encontramos, só recolher informações como sempre.

Ao informar aquilo, Ardelean passou a andar pelas beliches, olhando-as como quem as estudava. Seus dedos deslizaram pelas superfícies dos metais, memorizando sua textura em uma atitude desnecessária, mas comum a ele em momentos livres e de tensão.

— Eu sugiro que ataquemos. Se a gente tem a chance de matar os lycans, por que só recuar e esperar? Você já matou um antes, dessa vez vamos estar preparados — falou, parando logo em seguida para observar o homem.

Bernardo era de Marte, tal qual Augustus, seu irmão. Eles não tinham nada a ver um com outro em questão de personalidade, mas o quão parecidos eram suas assinaturas mágicas? A grande maioria dos semideuses, desde que filhos dos mesmos deuses, possuíam energias mágicas idênticas sem seus âmagos (como a própria genética de parentes). E esse detalhe era muito importante na hora da criação de rituais, poções etc.

Em momento algum o filho de Nox imaginou que Bernardo recusaria a proposta. Na verdade, ele já tinha percebido, durante o ataque da última missão, que o rapaz de Marte parecia estar... se controlando. Não no sentido de que queria ter atacado o lycan antes, mas sim no de que queria poder ter feito mais contra este último. A mesma selvageria que via em Augustus, quando este último se metia em batalhas e acabava aproveitando a situação para revelar sua verdadeira faceta. Um era contido, o outro escrachado. Ainda assim, eram iguais.

— Ele não me informou, só passou as ordens. Temos tempo ainda, se quiser confrontá-lo a respeito da decisão ou da necessidade dessa missão — disse Ulysses, encarando o meio-sangue. — Ainda preciso falar com Lorenzo, Dino me pediu para contar a vocês dois de uma vez, mas acabei me afobando — admitiu, na esperança de fisgar algum tipo de reação diferente do comum por parte do campista.

Era estranho pensar que os dois nunca antes (ao menos não até serem ordenados a montar um time) tinham se esbarrado pelo acampamento. Buonarroti, esse tempo inteiro, agia e reagia de maneira simples sem indicar nada do que pensava ou achava de fato. Para alguém como Ardelean, aquele tipo de personalidade era o pior, posto que ele demorava a compreender qual era a da pessoa.

E se havia algo que realmente tirava o jovem adulto do sério, esse algo era não compreender alguma coisa.