Dormitório Masculino

Ciela tinha uma certa rotina para com a V Coorte. Ali estava ela, com alguns produtos de limpeza enquanto se dirigia ao alojamento masculino para limpar e arrumar o local. Aproveitava-se que a maioria dos outros campistas já estavam em outros lugares, pelos Campos de Marte, pelas escolas ou pela faculdade.

A filha de Arcus tinha a mente aérea e a mesma expressão costumeira e sonhadora que sempre rondava seu rosto. As pessoas pareciam ter problemas com ela por causa de uma antiga pretora que ela sequer se lembrava já que não era adepta de guardar os rostos das pessoas com quem convivia. Tudo que sabia era que a tal garota traíra Nova Roma.

O local estava vazio. Ou quase. Havia uma figura alta e esguia parada, arrumando uma mala. De começo, ela não o reconheceu. Não alguém a quem ela estivesse habituada. — Ei, hm. Você se importa se eu limpar com você aqui? — perguntou de modo educado. Sua surpresa, no entanto, foi o rosto familiar do homem que virou-se para olhá-la.

— Huh. Ah. Oi, Maxwell. Como vai? — cumprimentou-o com as bochechas vermelhas, lembrando-se do treino que fizera com o outro. Olho para a mala antes de observá-lo bem. — Você vai embora? — o desapontamento em sua voz era quase evidente, mas algo estalou em seu cérebro. — Me desculpe. Não é da minha conta.

Ajeitou seu rabo de cabelo antes de mostrar para ele a vassoura e o balde com produtos de limpeza. — Se importa se eu for limpando? — era uma pergunta simples, mas que a fez baixar os olhos para não precisar encará-lo.

A ideia de ter uma prima ainda retumbava como o eco de um trovão em sua mente. Durante sua vida toda, o filho de Hades apenas conhecera a realidade de uma família deturpada que lhe apresentavam na Mansão Wittelsbach, sendo Cheryl e Theresa o que tivera de mais próximo que pudesse de fato representar um lar; mas agora, com a informação simplesmente colidindo com a sua cara após um quase sequestro no qual fora parar sobre a cama confortável de um quarto pertencente a Hela Deverich, Maxwell havia se deparado não apenas com um ser vivente cujo sangue correndo em seu organismo era o mesmo que o seu, mas dois — não podia esquecer a pequena Agatha, que além de sua prima, também era irmã.

Como o lobo solitário que era, e naturalmente desconfiado, demorou para que aceitasse isso; para bem da verdade, Maxwell não havia engolido a história por completo, principalmente porque a filha de Hécate era uma total desconhecida do acampamento grego. Mas os argumentos da bruxa fizeram-no dar o braço a torcer e ouvir mais da história, até que em certo ponto chegara-lhe o inevitável: tinha realmente uma família. Hela tinha uma casa em Nova Roma, a qual compartilhava com a ex-namorada; Maxwell não entendeu muito bem a situação da prima para com seus relacionamentos amorosos, e não queria se aprofundar muito sobre o seu caso com Hades, porque já era muito estranho ter de encarar a pequena bolota de fraldas que era a filha da bruxa e ter a consciência de que ela também era uma semideusa submundana, filha de seu próprio pai. Mas aceitou ir morar com Hela mesmo assim.

A localidade era ótima, e podia continuar tranquilamente com seu trabalho de centurião. Por esse motivo, estava arrumando as malas para que saísse do dormitório masculino da V Coorte e sr mudasse para a residência da prima. Dobrava camisas e cuecas, colocando-as na mala e percebendo o quão monocromático era seu guarda roupa — praticamente todas as peças eram pretas ou brancas, pouquíssimas num meio-termo cinzento. A única peça de roupa colorida ali existente era uma camisa verde, a que reconheceu automaticamente sendo de Lugus. Vários números maior que as suas e de tonalidade destoante, não poderia pertencer a mais ninguém. O pensamento fazia-o sentir um incômodo na boca do estômago ainda, portanto ele apenas jogou outra coisa por cima para esconder o item.

Foi nesse momento que ouviu a voz doce chamá-lo, sendo estranhamente conhecida aos seus ouvidos. Quando virou o rosto para olhar por cima do ombro, os olhos escuros depararam-se com madeixas douradas e um rosto redondo que perturbava-lhe a mente desde que havia voltado daquele reino mágico de estrelas. Ciela encontrava-se com uma vassoura em mãos e parecia empenhada em fazer uma faxina que o centurião achava ineficaz, uma vez que os homens que ali habitavam tornavam a desarrumar com tamanha velocidade que filhos de Mercúrio sentiriam inveja. A menina tagarela pareceu bastante curiosa sobre a mala em cima de sua cama e as roupas espalhadas, mas Maxwell percebeu que ela começava a aprender a não se meter em sua vida ao abaixar o olhar e mudar de assunto. Soltou uma risada baixa, contudo; era centurião afinal, e não podia destratar os legionários de sua própria coorte. Também não podia deixá-los cegos sobre o paradeiro de seu líder.

— Vou embora, mas não para longe — respondeu de forma sucinta, voltando sua atenção para as roupas que se aglomeravam como uma bagunça fenomenal. — Fique à vontade para limpar, mas não acho que irei terminar por aqui tão rápido.

Deu um sorriso amistosos quando ele se virou para olhá-la. Ciela não se consideraria apaixonada por Maxwell. Talvez… seria mais fácil se ela tivesse se apaixonado antes. Então, talvez pudesse definir porque seu rosto corava sempre que se aproximava dele. Em especial depois do maldito treino de dança que Malie passara. Pensar naquilo fez com que seus olhos se mantivessem bem firmes. Havia tomado algum tempo e esforço para se esquecer do cheiro de cigarro e outras coisas mais que pareciam impregnar Maxwell. Então, estar no mesmo ambiente que ele, sozinha, era estranho.

Ela sinceramente esperava ser ignorada. O fato de Maxwell tê-la respondido era surpreendente e a fez desviar o olhar de maneira momentânea da árdua tarefa de trocar os lençóis das camas. Ela não saberia dizer porque a maioria dos rapazes era tão desagradável, mas estava contente de não dormir ali. — Bem, nesse caso, espero que seja para um lugar mais agradável e com um odor menos… ruim. — disse de maneira calma, mordendo o inferior antes de voltar a atenção para a cama à sua frente.

— É, também acho que não vou terminar aqui tão cedo… quer dizer, por que garotos fazem tanta bagunça? A maioria das meninas mantém o próprio canto quase intacto. Em geral, nós fazemos um acordo de detonar com o alojamento quando é dia de um dos rapazes limpar. Vingança. — embora seu tom fosse leve, era possível ver o desagrado em seu rosto. Ciela não gostava tanto assim do estilo do Acampamento Romano. Mas aquela era a única vida que conhecia… fazer o que?

— Eu… pensei em ir embora também. Não para perto. Para bem longe. Muitas vezes desde que cheguei aqui. — admitiu com certa tristeza. Sentia-se ingrata, mas havia aquela pressão e, bem, ela não se sentia com os demais. Gostava do estilo cigano que seu pai levara nos três primeiros anos após seu nascimento. — Não parece justo já que eu nunca fui realmente maltratada aqui, apesar de olharem feio desde a pretora… enfim. Não vou te aborrecer. — acabou se interrompendo ao perceber que estava falando demais.

Sempre falava demais. E isso cansava as pessoas. Como sempre, a garota preferiu recolher-se em sua insignificância.

Os olhos do centurião correram ao redor ao som das palavras da filha de Arcus, notando, pela primeira vez, o que ela queria dizer. Maxwell nunca passou muito tempo ali, e por mais que sua percepção sobre tudo ao redor fosse extremamente aguçada, a bagunça nunca chegou a ser um empecilho em sua vida. Mas talvez fossem na de outras pessoas que, assim como Ciela, tinham de fazer o dificultoso trabalho de limpar tudo. Deu de ombros, continuando a enfiar meias dentro da mala.

— Certamente é um lugar mais agradável... eu acho. — Tentou imaginar como seria a vida daquele momento em diante, morando com sua prima e a recém-nascida, ainda na eventual presença da ex-namorada da prima, que acontecia de ser sua noiva antes que Hela a traísse com... o pai de Max. Ah, claro, um lugar infinitamente mais agradável. Se esforçou para não rir de forma sarcástica. — Melhor do que aqui, acredito. — Não se prolongou sobre o assunto e continuou em sua tarefa hábil de dobrar as roupas que acabavam por amassar de qualquer jeito. Maxwell não tinha muitos pertences quando chegara ao acampamento, mas havia adquirido coisas desde então. Quando percebeu que ficaria por mais tempo do que o esperado,  após a morte de Cheryl e o desaparecimento de Theresa... era o único lugar que tinha. Criou raízes, apesar de nunca tê-lo feito em lugar algum antes, nem mesmo no lugar onde cresceu e passou a vida toda.

Contudo, o silêncio não perdurou por muito tempo quando a menina começou a falar. Maxwell sabia que Ciela era uma tagarela de vez em quando, pelo tempo que já havia passado com ela em eventuais missões e treinos, mas também sabia que ela se retraía de forma tão rápida quanto se soltava quando percebia o que estava fazendo. Certamente não era seu dever e ele nem ao menos precisava fazê-la se sentir bem naquele momento, mas sentiu que talvez não fosse má ideia mantê-la ali para entretê-lo enquanto continuava a tarefa chata de arrumação para a mudança. Não, ele não estava amolecendo com o tempo, de forma alguma; só queria algum som para os ouvidos enquanto lhe apetecesse e a voz da legionária lhe parecia de bom tamanho.

— Ir embora para longe, hum? — perguntou, lhe dando uma olhadela por cima do ombro. — E para onde iria, se pudesse fugir?

Ciela o ouviu atentamente. Colocava os lençóis limpos e jogava os sujos em um canto para amontoar tudo em e levar consigo depois. Riu baixinho quando ele disse que pensava ser um lugar mais agradável. — Bem, pense positivo. Talvez se surpreenda para bem, não? — tentou usar de seu usual otimismo para ver se o fazia se animar. Embora duvidasse. Maxwell era tão rabugento que dava até nos nervos dela. Mesmo que Ciela não fosse nervosa.

Começou a tirar o pó e as teias de aranha para varrer a parte do dormitório que acabara de organizar. Ela sabia se colocar em seu lugar. Aprendera com a vida que nenhuma pessoa no mundo tinha paciência para suportá-la. Nem mesmo seu pai, que agora ela agia como se tivesse morrido. Lembrava-se das broncas e de como ele não perdia a oportunidade de fazê-la sentir-se mal por sua tagarelice incessante. Em partes, ele devia ter razão já que ela completara seus dezenove anos sem receber um parabéns dele ou de qualquer outra pessoa. E mesmo agora, continuava tão pura quanto aos treze anos.

— Eu não sei. Talvez eu fosse estudar. Ou talvez acabasse virando garçonete em algum restaurante de cidadezinha. Só estou cansada de como as coisas são e de como eu pareço… não me encaixar em lugar nenhum. Talvez eu ache alguém que goste de mim ao invés de só me tolerar. — a resposta era bem animada, como quase tudo que ela dizia. Embora houvesse certa dor em sua expressão.

— Não tenho ninguém mesmo… quer dizer, meu pai nunca deu atenção suficiente para a minha existência. Eu tentei me soltar dele quando voltei do treinamento com Lupa. Mas… foi ele quem se livrou de mim, no fim das contas. — a risada baixa deixava transparecer o cansaço. Deixou a vassoura em um canto e voltou a arrancar alguns lençois.

— Sabe, Maxwell. Obrigada por perguntar. Mas não precisa fingir que está curioso ou que se importa. Ninguém se importa. Nunca. Se você preferir o silêncio, pode só me ignorar. Eu compreendo. — finalizou o pensamento, sentindo os ombros caírem em cansaço mental. Sempre pensava em ir embora. E sempre que pensava nisso, se lembrava de seus motivos. Seu pai, o descaso, a falta de liberdade.

Colocou o bolo de lençóis no chão junto so primeiro montante e passou as mâos pelo rosto, sentando-se em um das camas.

Não precisava de muito para entender que Ciela era uma moça simples, mas Maxwell via melhor algumas facetas da semideusa que seus encontros anteriores não lhe haviam permitido. Ela era mais que simplista, era conformada com a simplicidade. Quase como se não tivesse grandes aspirações. E certamente era inocente. Max conseguia sentir isso de longe. E talvez fosse a parte mais perigosa. Que o filho de Hades tinha uma queda por pessoas que expressavam esse tipo de inocência e até uma certa fragilidade não era novidade, e Ciela era uma mulher bonita, embora talvez não percebesse isso. E terrivelmente atraente. Maxwell talvez estivesse se forçando a negar isso dado o percurso que sua última tentativa de somente "pegar" alguém havia tomado, e no que havia acabado. Ele não queria cometer o mesmo erro, mas era impossível não notá-la.

Quando Ciela pareceu levar a conversa para um lado mais emotivo, o filho de Hades ficou tenso. Não gostava desse tipo de interação com outras pessoas por ser íntima demais. Obviamente se valia de coisas do tipo quando queria confrontar alguém, ou subornar, e também quando tinha segundas intenções em termos sexuais. Mas nunca num diálogo normal. Não interrompeu-a, entretanto, deixando que ela mesma notasse que ele não era o tipo de cara com quem compartilhar coisas pessoais. Seria o melhor para ela que não se metesse com alguém da estirpe do Deverich. Ele não prestava. Pensou que pudesse se ajeitar, mas estava tremendamente enganado. Ciela era só uma garotinha que precisava aprender muito sobre o mundo. E o mundo não era bom. Nunca fora, e nunca iria ser.

Maxwell fechou a mala e se voltou em silêncio para a garota. Os olhos não deixaram de esquadrinhá-la enquanto cuidava da arrumação daquele local no qual jamais voltaria a dormir. Os cabelos dourados de aurora presos, poucos fios caindo por seu rosto largo. Porra, a menina era linda. Não tinha como negar e Maxwell jamais mentiria para si mesmo. E talvez fosse toda a sua aura de inocência que a tornasse tão chamativa aos seus olhos. Segurou com firmeza a mala e se pôs a andar em direção à saída do dormitório, mas ela estava no caminho. O corpo se aproximou do dela o suficiente para que ficassem cara a cara. A mão livre do centurião se ergueu e os dedos pousaram sob o queixo da filha de Arcus, fazendo-a erguer o rosto para encarar os olhos friamente negros do legado de Éris.

— Você não precisa de homens como ele, Ciela — disse em tom baixo. Afinal, quem era ele para dar uma lição de moral? Talvez fosse igual, senão a mesma pessoa, que o pai da menina. — Não precisa realmente de ninguém. E não se menospreze achando que irrita a paciência das pessoas. Mande todos se foderem.

Não disse exatamente mais nada. Mas fez algo. Se aproximou rapidamente, mas talvez fosse a supresa de seu ato que o tornou concreto. Pressionou os lábios contra os dela suavemente, lhe dando um selinho. Foi rápido e o rosto do centurião se afastou quase que imediatamente, lhe jogando uma piscadela logo em seguida. Sem dizer mais nada, seguiu seu caminho para fora do alojamento, deixando-a para trás.